Mulheres no comando do transporte brasileiro

Em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, CNT inicia série sobre participação feminina no setor.

Nahyra, 88, caminhoneira.

Patrícia, 24, pilota de avião.

Vanessa, 35, comandante de navio.

Solange, 45, motorista de ônibus.

Maria Elisabeth, 61, operadora de metrô.

Márcia, 46, taxista.

Em comum, o fato de estarem no comando de diferentes veículos de transporte. Algumas há 60 anos. Outras há somente três. Na bagagem da vida, experiências felizes e tristes de quem já cruzou as barreiras da cidade, do país ou até mesmo do oceano para cumprir sua missão. Mulheres que lutaram – e ainda lutam – para conciliar família e trabalho e para enfrentar os obstáculos de trabalhar em um universo predominantemente masculino, carregado de preconceitos e estigmas. Com a chegada do Dia Internacional da Mulher, a Agência CNT de Notícias traz histórias marcantes para homenagear aquelas que fazem parte do setor de transporte.

Atualmente, o setor conta com cerca de 2,2 milhões de profissionais, sendo 17% do sexo feminino. A maior parte das mulheres possui entre 30 e 39 anos e ensino médio completo. Os dados são da Rais (Relação Anual de Informações Sociais), do MTE (Ministério do Trabalho e Previdência Social). O órgão não tem levantamento do percentual de motoristas mulheres no Brasil, mas os números ainda são baixos. Os sistemas de trens e metrôs, por exemplo, possuem cerca de 7.000 empregadas mulheres, sendo que, segundo a ANPTrilhos (Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos), apenas 500 atuam como condutoras e maquinistas. Já no modal aéreo, apenas 2,5% de todas as licenças de piloto são obtidas por mulheres, sendo que a participação feminina na cabine de comando dos aviões comerciais é de 2,7%, de acordo com a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil).

Ainda que seja tímida, a procura feminina pelos cargos de condução já começa a despontar. O projeto Habilitação Profissional para o Transporte – Inserção de Novos Motoristas, do SEST SENAT, que visa inserir motoristas profissionais no mercado por meio da mudança da categoria da Carteira Nacional de Habilitação para C, D ou E, registrou a participação de 2.311 mulheres desde 2015. Além disso, em cinco anos, a demanda feminina cresceu 60,4% nos cursos voltados para o transporte de passageiros, de produtos perigosos e de transporte escolar da instituição. Em 2017, os cursos mais procurados pelas mulheres foram Cuidados Especiais no Transporte de Escolares, Custos Operacionais do Transporte de Cargas e A Precificação no Transporte Rodoviário de Cargas.

De acordo com a doutora em sociologia pela UnB (Universidade de Brasília), Ana Liesi Thurler, não é de se estranhar que algumas áreas mais procuradas pelas mulheres estejam ligadas ao cuidado. “Historicamente, enquanto os homens foram ensinados a trabalhar, da mulher se esperava o cuidado com o espaço doméstico e com a família. Isso justifica a grande busca por profissões na área de transporte escolar, por exemplo. O contato com crianças remonta ao ambiente de costumes”, acredita. Para ela, as relações de gênero são sociais e culturais e foram construídas no interior da sociedade patriarcal, que estabeleceu o lugar da mulher e o do homem. “Por mais que as mulheres venham batalhando para sair do espaço privado e ir para o público, a ascensão é uma luta”.

A professora avalia que, mesmo que estejam no processo de rompimento dessas dificuldades, poucas mulheres consideram a possibilidade de ingressar no setor de transporte porque ele ainda é tido como um ambiente masculino. “A mulher que alcança esse espaço é uma referência, porque deixa de repetir a vida da avó. Está provado que uma mulher pode pilotar avião ou trem. Essas condutoras tendem a puxar uma nova tendência e atrair motoristas com a sua coragem”, acrescenta.

É o caso da proprietária da Oficina da Mulher, Agda Oliver. Após considerar que pagou um valor que não correspondia ao serviço contratado numa oficina mecânica e ter ouvido de amigos que “passaram a perna nela, porque lugar de mulher não é uma oficina”, ela começou a estudar a possibilidade de abrir um espaço voltado para mulheres. Há oito anos, administra a oficina em Ceilândia, cidade a 30 km de Brasília.

“Senti a necessidade de ter uma oficina mecânica para mulheres. O nosso diferencial é o fato de termos profissionais que conversam de igual para igual com as clientes. Quando explicam os problemas do carro, elas não têm tanto receio de fazer uma pergunta boba, porque se sentem mais representadas”, conta.

Apesar de preferir contratar mulheres, Agda fala da dificuldade de recrutar mecânicas para o trabalho. Atualmente ela conta somente com uma profissional do sexo feminino e três homens. “Só não tenho mais mulheres porque não encontro no mercado. Muitas não fazem o curso de mecânica, que dura dois anos, por conta do paradigma de que não darão conta. As que vencem essa barreira são duplamente guerreiras. É uma profissão que exige peito, força de vontade e que se goste do que se faz”, avalia Agda. (Veja o vídeo no final desta reportagem)

Preconceito

O mesmo entrave é observado na Transpes, empresa de transporte de cargas pesadas com sede em Betim (MG). Apenas uma carreteira é contratada, embora seja intenção da diretoria atrair mais mulheres para a condução. Para a acionista e presidente do Conselho de Administração, Tárcia Gonzales, a mulher deve procurar emprego na área que se sentir mais confortável, porque o preconceito sempre existirá.

Ela relembra as diversas situações desconfortáveis por que passou por ser mulher e por estar à frente de um cargo de chefia. “Foram muitas propostas indecentes durante toda a minha vida profissional. Homens que me chamavam para sair depois do expediente. Você fica refém de uma sociedade machista, onde é preciso provar o seu valor a todo tempo. A mulher sofre independentemente de ser carreteira ou presidente da empresa. Sem falar que, muitas vezes, ganha menos. Tive que brigar muito para conseguir ganhar um salário igual ao dos meus companheiros”, lamenta. Ela agradece todo o apoio do pai e dos irmãos durante a trajetória, mas tem convicção de que o mercado de trabalho não foi tão amistoso. “Quantas vezes eu cheguei para uma reunião e, até mesmo, outras mulheres me disseram ‘mas é você?’”

Para a socióloga, Ana Liesi Thurler, quando vacilam ao entrar em um ônibus ou metrô, as mulheres estão duvidando das próprias capacidades. “Isso é algo que está no inconsciente delas. As pessoas não questionam se tem um condutor. Elas só pensam que é uma mulher. As questões cultural, educativa e pedagógica são peças-chaves para a presença ou ausência feminina no setor”.

Ana ressalta ainda a importância do engajamento das áreas de recursos humanos e gestão de pessoas das empresas para provocar a mudança de mentalidade no momento de contratação e no dia a dia corporativo. “Como poucas mulheres consideram a opção de se apresentarem para cargos de condução, é necessário o chamamento motivador para que as profissionais se matriculem em cursos de transporte e se candidatem às vagas nas empresas. Só assim vamos reduzir a resistência e provocar uma mudança de mentalidade”.

A série continua nesta terça-feira (6), com a história da primeira operadora de metrô do país (www.cnt.org.br).

Fonte: Agência CNT de Notícias